Eu tampo minha boca com as minhas mãos, mas o som já tinha escapado. O céu fica preto e eu ouço um coro de sapos começar a cantar.
Estúpida! Eu digo a mim mesma. Que coisa estúpida de se fazer! Eu espero, congelada, que a floresta fique cheia de assaltantes. Então me lembro que não restou quase ninguém.
Peeta, que foi ferido, é agora meu aliado. Quaisquer dúvidas que eu tivera sobre ele dissipam-se, porque se qualquer um de nós tirar a vida do outro agora seremos parias quando retornarmos ao Distrito 12. De fato, sei que se estivesse assistindo eu odiaria qualquer tributo que não se aliou imediatamente com seu parceiro de distrito. Além do mais, simplesmente faz sentido proteger um ao outro. E no meu caso – sendo uma dos amantes desafortunadas do Distrito 12 – é um requisito absoluto se eu quiser mais ajuda dos patrocinadores simpatizantes.
Os amantes desafortunados... Peeta deve ter jogado esse ângulo o tempo todo. Por que mais os Gamemakers fariam essa mudança sem precedentes nas regras? Para que dois tributos tenham uma chance de ganhar, o nosso “romance” deve ser tão popular com a audiência que condená-lo ameaçaria o sucesso dos Jogos. Não graças a mim. Tudo que eu fiz foi conseguir não matar o Peeta. Mas o que quer que ele tenha feito na arena, deve ter convencido a audiência que foi para me manter viva. Balançando sua cabeça para me impedir de correr para a Cornucópia. Lutando com Cato para me deixar escapar. Até mesmo se juntar aos Carreiristas deve ter sido um movimento para me proteger. Peeta, ao que parece, nunca foi um perigo para mim.
O pensamento me faz sorrir. Deixo minhas mãos caírem e levanto meu rosto para a luz do luar para que as câmeras definitivamente a capturem.
Então, quem resta para se temer? Foxface? O tributo de seu distrito está morto. Ela está operando sozinha, de noite. E sua estratégia tem sido evadir, não atacar. Eu não acho realmente que, mesmo que ela tenha ouvido a minha voz, faria qualquer coisa exceto esperar que outro me matasse.
Então tem o Thresh. Tudo bem, ele é uma ameaça distinta. Mas eu não o vi, nenhuma vez, desde que os Jogos começaram. Eu penso em como a Foxface ficou alarmada quando escutou um som no local da explosão. Mas ela não se virou para a floresta, ela se virou para o que quer que exista do outro lado dela. Para aquela área da arena que cai em algo que não conheço. Eu tenho quase certeza de que a pessoa da qual ela fugiu era Thresh, e que aquele era seu domínio. Ele nunca teria me ouvido de lá e, mesmo que tivesse, estou muito no alto para que alguém do tamanho dele me alcance.
Então resta Cato e a garota do Distrito 2, que agora estão com certeza celebrando a nova regra. Eles são os únicos que restam que se beneficiam com isso além de Peeta e de mim.
Eu corro deles agora, arriscando que eles tenham me ouvido chamar o nome de Peeta. Não, eu penso. Deixe eles virem. Deixe eles virem com seus óculos de visão noturna e seus corpos pesados de quebrar galhos. Bem no alcance das minhas flechas.
Mas eu sei que não virão. Se eles não vieram à luz do dia até a minha fogueira, não arriscarão o que poderia ser outra armadilha à noite. Quando eles vierem, será em seus próprios termos, não porque eu deixei que eles soubessem meu paradeiro.
Fique quieta e durma um pouco, Katniss, eu me instruo, apesar de desejar começar a procurar Peeta agora. Amanhã você o achará.
Eu durmo, mas de manhã sou extra-cuidadosa, pensando que embora os Carreiristas possam hesitar em me atacar em uma árvore, eles são completamente capazes de montar uma armadilha para mim. Eu me certifico de me preparar completamente para o dia – tomando um grande café-da-manhã, amarrando com firmeza minha mochila, preparando minhas armas – antes que eu desça. Mas tudo parece pacífico e tranquilo no chão.
Hoje eu terei que ser escrupulosamente cuidadosa. Os Carreiristas saberão que estou tentando localizar Peeta. Eles podem muito bem querer esperar até que eu faça isso antes de fazerem seu movimento. Se ele está tão profundamente ferido quanto Cato acha, eu estarei na posição de ter que defender nós dois sem qualquer assistência. Mas se ele está tão incapacitado, como conseguiu permanecer vivo? E como diabos vou encontrá-lo?
Tento pensar em qualquer coisa que Peeta já tenha dito que pode me dar uma indicação sobre onde ele está se escondendo, mas nada soa familiar. Então eu volto ao último momento em que o vi brilhando na luz do sol, gritando para que eu corresse. Então Cato apareceu, sua espada exposta. E depois que eu parti, ele feriu Peeta. Mas como Peeta escapou? Talvez ele tenha aguentado melhor o veneno das teleguiadas do que Cato. Talvez essa tenha sido a variável que permitiu que ele escapasse. Mas ele fora picado também. Então quão distante ele poderia ter chegado, esfaqueado e cheio de veneno? E como ele permaneceu vivo todos esses dias desde então? Se o ferimento e as picadas não o mataram, certamente a sede o teria levado agora.
E é quando eu consigo minha primeira pista sobre seu paradeiro. Ele não poderia ter sobrevivido sem água. Eu sei disso por causa dos meus primeiros dias aqui. Ele deve estar escondido em algum lugar perto de uma fonte. Há o lago, mas acho que essa é uma opção improvável já que está tão perto da base do acampamento dos Carreiristas. Algumas poças alimentadas por nascentes. Mas você realmente seria um alvo fácil em uma dessas. E o riacho. Aquele que vai do acampamento que Rue e eu fizemos até lá embaixo perto do lago e além. Se ele ficasse perto do riacho, ele podia mudar sua localização e sempre ficar próximo à água. Podia andar na corrente e apagar quaisquer vestígios. Ele pode até ser capaz de pegar um ou dois peixes.
Bem, é um local para começar, de qualquer maneira.
Para confundir a mente dos meus inimigos, eu começo uma fogueira com muita madeira verde. Mesmo que eles achem que é um ardil, espero que eles decidam que estou escondida em algum lugar próximo. Quando, na realidade, estarei caçando o Peeta.
O sol queima a bruma matinal quase imediatamente e eu consigo afirmar que o dia será mais quente que o normal. A água está fria e agradável nos meus pés descalços enquanto eu me dirijo corrente abaixo. Estou tentada a chamar o nome de Peeta enquanto ando, mas decido não fazê-lo. Terei que encontrá-lo com meus olhos e um ouvido bom, ou ele terá que me achar.
Ele saberá que estarei procurando, certo? Ele não tem uma opinião tão baixa de mim para pensar que eu ignoraria a nova regra e ficaria sozinha. Teria? Ele é muito difícil de se prever, o que poderia ser interessante sob circunstâncias diferentes, mas no momento só providencia um obstáculo extra.
Não demora muito para alcançar o ponto onde eu parti para ir ao acampamento dos Carreiristas. Não há sinal de Peeta, mas isso não me surpreende. Eu já passei acima e abaixo dessa extensão por três vezes desde o incidente das teleguiadas. Se ele estivesse próximo, eu certamente teria suspeitado disso.
O riacho começa a curvar para esquerda numa parte da floresta que é nova para mim. Ribanceiras lamacentas cobertas por plantas aquáticas levam a pedras grandes que aumentam de tamanho até eu começar a me sentir meio presa. Não seria pouca coisa escapar do riacho agora. Lutar contra Cato ou Thresh enquanto escalo esse terreno rochoso. De fato, eu acabo de decidir que estou completamente no caminho errado, que um garoto ferido seria incapaz de navegar para dentro e fora dessa fonte d’água, quando vejo o vestígio sangrento descendo pela curva de uma pedra grande desgastada. Está muito seco agora, mas as linhas manchadas correndo lado a lado sugerem que alguém – que talvez não estivesse em total controle de suas faculdades mentais – tentou limpá-las.
Abraçando as pedras, eu me movo lentamente na direção do sangue, procurando por ele. Eu encontro mais algumas manchas de sangue, uma com algumas fibras de tecido coladas nela, mas sem sinal de vida. Eu me descontrolo e digo seu nome em uma voz abafada:
— Peeta! Peeta!
Então um mockingjay pousa numa árvore desgastada e começa a imitar meus tons, então eu paro. Desisto e desço até o riacho, pensando: Ele deve ter se deslocado. Para algum lugar mais abaixo.
Meu pé acabou de romper a superfície da água quando ouço uma voz.
— Está aqui para acabar comigo, querida?
Eu me viro. Veio da esquerda, então eu não consigo captar muito bem. E a voz estava rouca e fraca. Ainda assim, deve ter sido Peeta. Quem mais na arena me chamaria de querida? Meus olhos examinam cuidadosamente a ribanceira, mas não há nada. Só lama, as plantas, a base das pedras.
— Peeta? — sussurro. — Onde você está?
Não há resposta. Será que eu simplesmente imaginei isso? Não, tenho certeza que foi real e muito próximo também.
— Peeta? — eu me arrasto pela ribanceira.
— Ora, não pise em mim.
Eu pulo para trás. Sua voz estava bem abaixo do meu pé. Ainda não há nada. Então seus olhos se abrem, inconfundivelmente azuis na lama marrom e nas folhas verdes. Eu arfo e sou recompensada por um vestígio de dentes brancos enquanto ele ri.
É a palavra final em camuflagem. Esqueça arremessar pesos por aí. Peeta deveria ter ido para sua sessão privada com os Gamemakers e se pintado de árvore. Ou de uma pedra grande desgastada. Ou de uma ribanceira lamacenta cheia de ervas daninhas.
— Feche seus olhos novamente — ordenei.
Ele fecha, e sua boca também, e desaparece completamente. A maior parte do que julgo ser seu corpo está na verdade sob uma camada de lama e plantas. Sua face e braços estão tão habilidosamente disfarçados para que fiquem invisíveis. Eu me ajoelho ao lado dele.
— Acho que todas aquelas horas decorando bolos vieram a calhar.
Peeta sorri.
— Sim, glacê. A defesa final dos moribundos.
— Você não vai morrer — eu digo a ele firmemente.
— Quem disse? — Sua voz está tão atormentada.
— Eu disse. Estamos no mesmo time agora, sabe.
Seus olhos se abrem.
— Então, ouvi dizer. Que legal da sua parte achar o que restou de mim.
Puxo minha garrafa d’água e dou-lhe pra beber.
— Onde Cato te cortou? — pergunto.
— Perna esquerda. Bem acima — ele responde.
— Vamos te colocar no riacho, te lavar para que eu possa ver que tipos de machucados você tem.
— Incline-se um minuto primeiro — ele diz. — Preciso te dizer algo.
Eu me inclino e coloco meu ouvido bom nos lábios dele, o que provoca cócegas quando ele sussurra.
— Lembre-se, estamos loucamente apaixonados, então não tem problema me beijar quando sentir vontade.
Eu levanto minha cabeça abruptamente, mas acabo rindo.
— Obrigada, lembrarei disso.
Pelo menos, ele ainda é capaz de fazer piada. Mas quando começo a ajudá-lo a ir até o riacho, toda a leveza desaparece. São apenas sessenta centímetros de distância, quão difícil pode ser? Muito difícil, quando percebo que ele é incapaz de se mover um centímetro sozinho. Ele está tão fraco que o melhor que pode fazer é não resistir. Eu tento arrastá-lo, mas apesar do fato de eu saber que ele está fazendo tudo que pode para ficar quieto, gritos agudos de dor escapam dele. A lama e as plantas parecem tê-lo aprisionado e eu finalmente tenho que dar um puxão gigantesco para libertá-lo de suas amarras. Ele ainda está há sessenta centímetros da água, deitado ali, os dentes cerrados, as lágrimas cortando caminho na sujeira em seu rosto.
— Olha, Peeta. Vou te rolar até o riacho. É bem raso lá, tudo bem? — eu digo.
— Excelente — ele diz.
Eu agacho ao lado dele. Não importa o que aconteça, eu digo a mim mesma, não pare até que ele esteja na água.
— No três — eu digo. — Um, dois, três!
Eu só consigo dar uma rodada completa antes de ter que parar por causa do som horrível que ele faz. Agora ele está na beira do riacho. Talvez isso seja melhor, de qualquer jeito.
— Está bem, mudança de planos. Não vou te colocar totalmente dentro.
Além do mais, se eu colocá-lo dentro, quem sabe se serei capaz de tirá-lo?
— Nada mais de rolar? — ele pergunta.
— Já acabou. Vamos te limpar. Fique de olho na floresta por mim, está bem?
É difícil saber por onde começar. Ele está tão empastado com lama e folhas desbotadas, não consigo nem ver suas roupas. Se ele estiver usando roupas. O pensamento me faz hesitar por um momento, mas então eu mergulho. Corpos nus não são nada demais na arena, certo?
Eu tenho duas garrafas d’água e o odre da Rue. Eu as apoio contra as pedras no riacho para que as duas estejam sempre enchendo enquanto eu entorno a terceira sobre o corpo de Peeta. Leva um tempo, mas eu finalmente me livro de lama o bastante para achar suas roupas. Eu gentilmente abro sua jaqueta, desabotoou sua camiseta e as tiro dele. Sua camiseta está tão emplastrada em seus ferimentos que eu tenho que cortá-la com a minha faca e banhá-lo novamente para soltá-la. Ele está muito ferido com uma ampla queimadura ao longo de seu peito e quatro picadas de teleguiadas, se contar aquela embaixo de sua orelha. Mas eu me sinto um pouco melhor. Essa parte eu posso cuidar. Eu decido cuidar da parte superior de seu corpo primeiro, para aliviar um pouco da dor, antes que eu cuide de qualquer dano que Cato tenha feito a sua perna.
Já que cuidar de seus ferimentos parece inútil quando ele está deitado no que virou uma poça de lama, eu consigo apoiá-lo contra uma pedra grande e desgastada. Ele fica sentado lá, sem reclamar, enquanto lavo todos os traços de terra de seu cabelo e pele. Sua pele está muito pálida à luz do sol e ele não parece mais forte e troncudo. Eu tenho que escavar os ferrões das teleguiadas de seus inchaços, o que faz com que ele recue, mas no instante que eu aplico as folhas ele suspira em alívio. Enquanto ele seca ao sol, lavo sua camiseta e jaqueta imundas e espalho-as sobre as pedras grandes desgastadas. Então aplico o creme contra queimadura em seu peito. É quando noto como sua pele está quente. A camada de lama e as garrafas d’água disfarçaram o fato de que ele está queimando de febre. Eu procuro no kit de primeiros socorros que consegui do garoto do Distrito 1 e encontro pílulas que reduzem sua temperatura. Minha mãe na verdade sucumbe as compras ocasionalmente quando seus medicamentos caseiros falham.
— Engula-as — eu digo a ele, e ele obedientemente toma o remédio. — Você deve estar faminto.
— Na verdade não. É engraçado, eu não tenho estado faminto há dias — diz Peeta.
De fato, quando eu lhe ofereço groosling, ele torce seu nariz para ele e o afasta. É quando eu fico sabendo como ele está doente.
— Peeta, precisamos te dar comida — insisto.
— Vai simplesmente voltar — ele responde.
O melhor que eu posso fazer é fazê-lo comer alguns pedacinhos de frutas secas.
— Obrigado. Estou muito melhor, sério. Posso dormir agora, Katniss? — ele pergunta.
— Logo — prometo. — Preciso olhar para a sua perna primeiro.
Tentando ser o mais gentil que consigo, removo suas botas, suas meias, e então muito lentamente tiro sua calça, centímetro por centímetro. Eu consigo ver o rasgo que a espada de Cato fez no tecido sobre sua coxa, mas de jeito algum me preparo para o que há abaixo. O corte profundamente inflado esvaindo tanto sangue quanto pus. O inchaço da perna. E pior de tudo, o cheiro da carne supurando.
Eu quero fugir. Desaparecer na floresta como fiz naquele dia que eles trouxeram a vítima de queimadura para a nossa casa. Ir caçar enquanto a minha mãe e a Prim cuidam do que eu não tenho nem a habilidade nem a coragem de enfrentar. Mas não há ninguém aqui exceto eu. Eu tento capturar o comportamento calmo que minha mãe assume quando lida com casos particularmente ruins.
— Bem horrível, hein? — diz Peeta.
Ele está me observando atentamente.
— Mais ou menos — dou de ombros como se não fosse nada demais. — Você deveria ver algumas das pessoas que levam pra minha mãe das minas.
Eu me abstenho de dizer como eu geralmente saio da casa sempre que ela trata de alguém com algo pior que um resfriado. Pensando nisso, eu nem gosto muito de ficar perto de tosses.
— A primeira coisa que se deve fazer é limpá-lo bem.
Deixei Peeta de cueca porque ela não está em má condição e eu não quero puxá-la sobre sua coxa inchada e, tudo bem, talvez a ideia de vê-lo pelado me deixa desconfortável.
Essa é outra coisa sobre a minha mãe e a Prim. Nudez não tem efeito sobre elas, não lhes dá motivo algum de vergonha. Ironicamente, a esta altura dos Jogos, minha irmãzinha seria de muito mais utilidade para Peeta do que eu sou.
Movo meu quadrado de plástico sob ele para que possa lavar o resto dele. Com cada garrafa que eu derramo sobre ele, seu ferimento parece pior. A parte inferior de seu corpo está boa, só umas picadas de teleguiadas e algumas poucas queimaduras que trato rapidamente. Mas o corte em sua perna... que diabos posso fazer com aquilo?
— Por que não deixamos respirar um pouco e então...
— E então você costura? — Peeta pergunta.
Ele parece quase com pena de mim, como se soubesse como estou perdida.
— Isso mesmo. Enquanto isso, coma.
Eu ponho algumas metades de peras secas em sua mão e volto para o riacho para lavar o resto de suas roupas. Quando elas estão esticadas e secando, examino o conteúdo do kit de primeiros socorros. São coisas bem básicas. Bandagens, pílulas de febre, remédios para acalmar estômagos.
Nada do calibre que eu preciso para tratar Peeta.
— Teremos que experimentar alguns — admito.
Eu sei que as folhas das teleguiadas extraem a infecção, então começo com elas. Dentro de minutos pressionando o punhado de coisas verdes mastigadas no ferimento, pus começa a escorrer pela lateral de sua perna. Eu digo a mim mesma que isso é uma coisa boa e mordo o interior da minha bochecha forte porque meu café-da-manhã está ameaçando fazer uma reaparição.
— Katniss? — Peeta chama.
Eu encontro seus olhos, sabendo que meu rosto deve estar de algum tom de verde. Ele balbucia as palavras.
— E quanto aquele beijo?
Eu caio em risada porque a coisa toda é tão revoltante que não consigo aguentar.
— Algo errado? — ele pergunta um tanto ingenuamente demais.
— Eu... eu não sou nada boa com isso. Eu não sou a minha mãe. Eu não faço ideia do que estou fazendo e odeio pus — digo. — Ui! — eu me permito soltar um resmungo enquanto lavo a primeira rodada de folhas e aplico a segunda. — Uuui!
— Como você caça? — ele pergunta.
— Confie em mim. Matar coisas é muito mais fácil que isso — eu digo. — Apesar de que, pelo que sei, possa estar te matando.
— Pode se apressar um pouquinho? — ele pergunta.
— Não. Cala a boca e coma suas peras — rebato.
Após três aplicações e o que parece ser um balde de pus, o ferimento parece mesmo melhor. Agora que o inchaço abaixou-se, eu consigo ver o quão profundamente a espada de Cato cortou. Até o osso.
— E agora, Dra. Everdeen? — ele pergunta.
— Talvez eu coloque um pouco da pomada pra queimadura nisso. Eu acho que ajuda com infecção, de qualquer jeito. E enfaixar?
Eu faço isso e a coisa toda parece muito mais controlável, coberta em algodão branco limpo. Apesar de que, contra a bandagem estéril, a bainha de sua cueca parece nojenta e transbordando com doenças contagiosas. Eu puxo a bolsa da Rue.
— Aqui, cubra-se com isso e eu lavarei sua cueca.
— Ah, eu não ligo se você me ver — diz Peeta.
— Você é exatamente como o resto da minha família. Eu ligo, tudo bem?
Viro de costas e olho para o riacho até que a cueca chapinhe na corrente. Ele deve estar se sentindo um tantinho melhor se consegue atirar.
— Sabe, você é meio sensível para uma pessoa tão letal — Peeta comenta enquanto eu bato sua cueca entre duas pedras para limpá-la.
— Gostaria de ter deixado você dar um banho em Haymitch no final das contas.
Eu torço meu nariz para a memória.
— O que ele te mandou até agora?
— Nadinha — Peeta responde. Então há uma pausa, enquanto ele se dá conta. — Por que, você conseguiu algo?
— Remédio para queimadura — eu digo quase timidamente. — Ah, e um pouco de pão.
— Eu sempre soube que você era a favorita dele — diz Peeta.
— Por favor, ele não suporta ficar no mesmo cômodo que eu.
— Porque vocês são muito parecidos —Peeta resmunga.
Eu ignoro isso, no entanto, porque essa realmente não é a hora de eu insultar Haymitch, que é meu primeiro impulso.
Deixo Peeta cochilar enquanto suas roupas secam, mas ao final da tarde, não ouso esperar ainda mais. Eu gentilmente balanço seu ombro.
— Peeta, temos que ir agora.
— Ir? — Ele parece confuso. — Ir para onde?
— Pra longe daqui. Corrente abaixo talvez. Para algum lugar em que possamos nos esconder até que você esteja mais forte.
Eu o ajudo a se vestir, deixando seus pés descalços para que possamos andar na água, e puxo-o na vertical. Seu rosto é drenado de cor no momento que coloca peso em sua perna.
— Vamos. Você consegue.
Mas ele não consegue. Não por muito tempo, pelo menos. Nós andamos cerca de quarenta e cinco metros correnteza abaixo, com ele apoiado no meu ombro, e eu posso afirmar que ele vai desmaiar.
Eu o sento na ribanceira, coloco sua cabeça entre seus joelhos, e dou tapinhas em suas costas sem jeito enquanto vasculho a área. É claro, eu adoraria colocá-lo em cima de uma árvore, mas isso não vai acontecer. Podia ser pior, contudo. Algumas dessas pedras formam pequenas estruturas parecidas com cavernas. Eu ponho meus olhos em uma a cerca de dezoito metros acima do riacho.
Quando ele é capaz de ficar em pé, eu meio guio, meio carrego-o até a caverna. Na verdade, eu gostaria de procurar um lugar melhor, mas esse terá que servir porque meu aliado está ferido. Branco feito papel, arfando, e, apesar de ter começado agora a esfriar, ele está tremendo.
— Katniss — ele chama.
Eu vou até ele e tiro o cabelo de seus olhos.
— Obrigado por me encontrar.
— Você teria me encontrado se pudesse.
Sua testa está queimando. Como se o remédio não estivesse fazendo efeito algum.
De repente, do nada, fico com medo que ele vá morrer.
— Sim. Olha, se eu não voltar... — ele começa.
— Não fale assim. Eu não drenei todo esse pus por nada.
— Eu sei. Mas só no caso de eu não... — ele tenta continuar.
— Não, Peeta, eu não quero nem discutir isso — eu digo, colocando meus dedos em seus lábios para silenciá-lo.
— Mas eu... — ele insiste.
Impulsivamente, eu me inclino para frente e o beijo, parando suas palavras. Isso está provavelmente atrasado, de qualquer jeito, já que ele está certo, nós devíamos estar loucamente apaixonados. É a primeira vez que eu beijei um garoto, o que deveria fazer algum tipo de impressão, eu acho, mas tudo que consigo registrar é como seus lábios estão anormalmente quentes de febre. Eu me separo e puxo a beirada do meu saco de dormir ao redor dele.
— Você não vai morrer. Eu proíbo isso. Está certo?
— Está certo — ele sussurra.
Eu saio no ar frio da noite bem quando um paraquedas flutua do céu. Meus dedos rapidamente desfazem o nó, esperando por algum medicamento real para tratar a perna de Peeta. Ao invés disso, encontro pote de caldo quente.
Haymitch não podia estar me mandando uma mensagem mais clara. Um beijo equivale a um pote de caldo. Eu quase consigo ouvir seu resmungo. Você deveria estar apaixonada, querida. O garoto está morrendo. Me dê algo com o que eu possa trabalhar!
E ele está certo. Se quero manter Peeta vivo, tenho que dar à audiência algo a mais para se preocupar. Amantes desafortunados desesperados para chegar em casa juntos. Dois corações batendo como um. Romance.
Nunca tendo me apaixonado, isso será realmente difícil. Eu penso nos meus pais. O jeito como meu pai nunca falhou em trazer presentes para ela da floresta. O modo como o rosto de minha mãe se iluminava ao som das botas dele na porta. O jeito como ela quase tinha parado de viver quando ele morreu.
— Peeta! — eu digo, tentando o tom especial que minha mãe usava só com o meu pai.
Ele cochilou novamente, mas eu o beijo para acordá-lo, o que parece assustá-lo. Então ele sorri como se fosse ficar feliz em ficar deitado ali me olhando para sempre. Ele é ótimo nessas coisas.
Eu levanto o pote.
— Peeta, olhe o que Haymitch te mandou.
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