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Capitulo 1
Capitulo 1

Quando eu acordo, o outro lado da cama está frio. Meus dedos se esticam, procurando o calor de Prim, mas encontrando apenas a áspera lona que cobre o colchão. Ela deve ter tido pesadelos e ido para a cama de nossa mãe. É claro que ela foi. Hoje é o dia da colheita.

 

Eu me apoio em um cotovelo. Há luz o bastante no quarto para vê-las. Minha irmã mais nova, Prim, está enroscada ao lado de nossa mãe, suas bochechas pressionadas juntas. No sono, minha mãe parece mais jovem, ainda que cansada, mas não deprimida.

 

O rosto de Prim é liso como uma gota de chuva, ela é tão linda quanto a flor que foi inspiração para seu nome. Minha mãe era muito bonita antigamente, também. Ou assim me dizem.

 

Deitado aos pés de Prim, guardando-a, está o gato mais feio do mundo. Focinho amassado, metade de uma orelha faltando, olhos cor de suco apodrecido. Prim o nomeou Buttercup, insistindo que a pele amarela lamacenta dele combinava com uma flor brilhante. Ele me odeia. Ou ao menos desconfia de mim.

 

Mesmo que tenha sido há anos, acho que ele ainda se lembra de como eu tentei afogá-lo em um balde quando Prim o trouxe para casa. Gatinho magro, barriga inchada de lombrigas, rastejando com pulgas. A última coisa que eu precisava era outra boca para alimentar. Mas Prim implorou tanto, chorou até, e eu tive de deixá-lo ficar. Ficou ok. Minha mãe se livrou das pulgas e ele tornou-se um caçador de ratos. Ainda pega um rato ocasionalmente. Às vezes, quando eu limpo uma caça, dou as entranhas para Buttercup.

 

Entranhas. Esse é o mais próximo que nós chegaremos do amor.

 

Balanço minhas pernas para fora da cama e deslizo dentro das minhas botas de caça. Couro flexível moldado pelos meus pés. Coloquei minhas calças, camisa, enrolei minha longa trança escura dentro de um chapéu e agarrei meu saco de forragem.

 

Na mesa, em uma tigela de madeira para protegê-lo de ratos e gatos, está um perfeito queijinho envolto em folhas de manjericão. O presente de Prim para mim no dia da colheita. Eu coloco o queijo cuidadosamente no bolso e deslizo pra fora.

 

Nossa parte do Distrito 12, apelidada de Costura, está usualmente borbulhando com mineiros de carvão nesta hora dirigindo-se para o turno da manhã. Homens e mulheres com os ombros curvados, juntas inchadas, muitos dos que deixaram há muito tempo de tentar esfregar o pó de carvão de suas unhas quebradas, as linhas de suas faces afundadas. Mas hoje as ruas de cinza negra estão vazias. As persianas das casas cinzentas estão fechadas. A colheita não é até as duas. Pode também dormir. Se você puder.

 

Nossa casa é quase no limite da Costura. Eu só tenho que passar uns poucos portões para chegar ao campo imundo chamado de Campina. Separando a Campina da floresta, de fato circundando todo o Distrito 12, está uma alta cerca de arame com voltas de arame-farpado no topo. Em teoria, é supostamente para estar eletrificada vinte e quatro horas por dia como um dissuasor para predadores que vivem na floresta – bando de cães selvagem, pumas solitários, ursos – que costumavam ameaçar nossas ruas. Mas desde que nós somos sortudos pra conseguir duas ou três horas de eletricidade nas noites, é geralmente seguro encostar na cerca. Mesmo assim, eu sempre tiro um momento para escutar cuidadosamente um zumbido que significa que a cerca está viva. Nesse momento, está silenciosa como uma pedra.

 

Escondida por uma massa de arbustos, eu deito sobre minha barriga e deslizo sob um trecho de 60 cm que estava aberto por anos. Existiam alguns outros pontos fracos na cerca, mas esse era tão perto de casa que eu quase sempre entro na floresta por aqui.

 

Tão logo que estou nas árvores, encontro um arco e uma aljava de flechas em um tronco oco. Eletrificada ou não, a cerca tinha sucesso em afastar os carnívoros do Distrito 12. Dentro da floresta eles vagam livremente, e há preocupações adicionais como cobras venenosas, animais violentos, e nenhum caminho real para seguir. Mas também há comida se você sabe como encontrá-la.

 

Meu pai sabia e me ensinou algo antes de ele ser explodido em pedaços em uma detonação na mina. Não existia nada nem para enterrar. Eu tinha onze anos então. Cinco anos depois, ainda acordo gritando para ele correr.

 

Embora ultrapassar a cerca para a floresta fosse ilegal e caça furtiva rendesse as mais severas punições, mais pessoas se arriscariam se tivessem armas. Mas a maioria não é destemida o bastante para se aventurar com apenas uma faca.

 

Meu arco era uma raridade, feito pelo meu pai, junto com uns poucos outros que eu mantenho escondidos na floresta, cuidadosamente envoltos em capas impermeáveis. Meu pai podia ter feito um bom dinheiro vendendo-os, mas se os oficiais descobrissem, ele seria publicamente executado por incitar uma rebelião.

 

A maioria dos Pacifistas fecha os olhos para os poucos de nós que caçam porque eles são tão famintos por comida fresca quanto todos. Na verdade, eles estão entre os melhores clientes. Mas a ideia de que alguém possa andar armado na Costura nunca seria permitida.

 

No outono, poucas bravas almas enfiam-se na floresta para colher maçãs. Mas sempre na orla da Campina. Sempre perto o bastante para correr de volta à segurança do Distrito 12 se problemas chegassem.

 

— Distrito Doze. Onde você pode morrer de fome em segurança — eu murmuro.

 

Então olho rapidamente por sobre meu ombro. Mesmo aqui, mesmo no meio do nada, você se preocupa que alguém tenha de escutado.

 

Quando eu era mais jovem, assustei minha mãe até a morte pelas coisas que exclamava sobre o Distrito 12, sobre as pessoas que regram nosso país, Panem, e de uma cidade distante chamada de Capital. Eventualmente eu entendi que isso iria apenas nos trazer mais problemas. Então aprendi a segurar minha língua e mudar minhas feições para uma máscara de indiferença para que ninguém pudesse jamais ler meus pensamentos. Faço meu trabalho silenciosamente na escola. Tenho apenas pequenas conversas polidas no mercado público.

 

Discuto um pouco mais que negócios no Prego, que é um mercado negro onde faço a maior parte do meu dinheiro. Até em casa, onde eu sou mesmo agradável, fujo de discussões sobre assuntos polêmicos. Como a Colheita, ou a carência de comida, ou os Jogos Vorazes. Prim podia começar a repetir minhas palavras, e então onde nós estaríamos?

 

Na floresta espero a única pessoa com quem posso ser eu mesma. Gale. Eu posso sentir os músculos do meu rosto relaxando, meu passo apressando enquanto eu subia as colinas para o nosso lugar, uma orla de pedra com vista para o vale. A visão dele me esperando lá me trouxe um sorriso. Gale diz que eu nunca sorrio exceto na floresta.

 

— Hey, Catnip — diz Gale.

 

Meu nome real é Katniss, mas quando eu disse para ele pela primeira vez, eu mal tinha sussurrado. Assim, ele pensou que eu tinha dito Catnip. Então quando esse lince louco começou a me seguir nos arredores da floresta procurando esmolas, tornou-se o apelido oficial dele para mim. Eu finalmente tive de matar o lince porque ele assustou a caça. Quase me arrependi porque ele não era má companhia. Mas consegui um preço decente pelo seu couro.

 

— Olhe o que eu peguei — Gale segura um pedaço de pão com uma flecha o atravessando, e eu rio.

 

Era um pão de padaria de verdade, não o achatado e estúpido pão de forma que nós fazemos das nossas rações de grãos.

 

Eu o pego em minha mão, retiro a flecha e o seguro perto do meu nariz, inalando a fragrância que faz minha boca encher de saliva. Pão ótimo como esse é para ocasiões especiais.

 

— Hmm, ainda quente — eu digo. Ele deve ter estado na padaria de madrugada para consegui-lo. — Quanto te custou?

 

— Só um esquilo. Acho que o velho estava se sentindo sentimental essa manhã — diz Gale. — Até me desejou sorte.

 

— Bem, nós todos nos sentimos mais próximos hoje, não? — falei nem sequer me importando de revirar meus olhos. — Prim nos deixou um queijo.

 

Eu o puxei.

 

Sua expressão de iluminou de prazer.

 

— Obrigado, Prim. Nós teremos uma festa de verdade.

 

De repente ele cai no sotaque de Capital, enquanto imita Effie Trinket, a mulher loucamente alegre que chega uma vez ao ano para ler os nomes no pódio.

 

— Eu quase esqueci! Feliz Jogos Vorazes! — Ele arranca algumas amoras silvestres dos arbustos que nos rodeia. — E que a sorte — ele lança uma fruta em um alto arco na minha direção.

 

Eu a peguei com a minha boca e quebrei a pele delicada com os meus dentes. A aspereza doce explode pela minha boca.

 

— ...esteja sempre a seu favor! — Eu terminei com igual entusiasmo.

 

Nós temos que brincar sobre isso porque a alternativa é ficar assustado fora de seu juízo. Além disso, o sotaque de Capital é tão fingido, quase qualquer coisa soa divertida nele.

 

Eu assisto enquanto Gale tira sua faca e corta o pão. Ele podia ser meu irmão. Cabelo escuro liso, pele cor de oliva, nós até temos os mesmos olhos cinzentos. Mas não somos parentes, pelo menos não próximos. A maior parte das famílias que trabalham nas minas se assemelham.

 

É por isso que minha mãe e Prim, com seus cabelos claros e olhos azuis, sempre parecem fora de lugar. Elas estão. Os pais da minha mãe são parte de uma pequena classe de comerciantes que fornecem para os oficiais, Pacifistas, e o ocasional cliente da Costura. Eles administram uma loja de remédios na parte mais legal do Distrito 12.

 

Uma vez que ninguém pode se dar ao luxo de médicos, boticários são nossos melhores tapa-buraco. Meu pai conheceu minha mãe porque numa caçada ele iria de vez em quando coletar ervas medicinais e vendê-las na loja dela para misturá-las em remédios. Ela deve ter realmente o amado para deixar a casa dela e ir para a Costura.

 

Tento lembrar disso quando tudo o que eu posso ver é uma mulher que se senta, vazia e inatingível, enquanto suas crianças ficam só pele e ossos. Eu tento perdoá-la pelo meu pai. Mas para ser honesta, não sou do tipo que perdoa.

 

Gale arruma as fatias de pão com o queijo macio, cuidadosamente colocando folhas de manjericão por cima enquanto eu esvazio os arbustos de suas amoras. Nós ficamos atrás em um esconderijo nas rochas. Desse lugar, nós somos invisíveis, mas temos uma clara visão do vale, que está transbordando com vida de verão, verduras para colher, raízes para escavar, pescado iridescente na luz do sol.

 

O dia é glorioso, com um céu azul e brisa suave. A comida está uma maravilha, com o queijo gotejando dentro do pão quente e as amoras estourando em nossas bocas. Tudo seria perfeito se isso fosse realmente um feriado, se todo o dia eu fosse vagar nas montanhas com Gale, caçando pela ceia da noite. Mas em vez disso, temos de ficar de pé na praça às duas horas esperando pelos nomes que são chamados.

 

— Nós poderíamos fazer, sabe — Gale diz quietamente.

 

— O quê? — pergunto.

 

— Deixar o distrito. Fugir. Viver na floresta. Você e eu, nós podemos fazer — diz Gale.

 

Eu não sei como responder. A ideia é tão ridícula.

 

— Se nós não tivéssemos tantas crianças — ele acrescenta quietamente.

 

Eles não são nossos filhos, é claro. Mas eles poderiam ser. Os dois irmãos pequenos e a irmã de Gale. Prim. E você pode também acrescentar nossas mães, também, porque como elas viveriam sem nós? Quem saciaria aquelas bocas que estão sempre pedindo por mais? Com ambos caçando diariamente, ainda há noites que a caça tem que ser trocada por banha de porco ou cordões de sapatos ou madeira, ainda tem noite em que nós vamos para cama com nossos estômagos roncando.

 

— Eu nunca quero ter filhos — digo.

 

— Eu poderia. Se eu não vivesse aqui — diz Gale.

 

— Mas você vive — respondo, irritada.

 

— Esqueça — ele rebate de volta.

 

A conversa ficou toda errada. Partir? Como eu poderia deixar Prim, que é a única pessoa no mundo que eu certamente amo? E Gale é devotado a sua família. Nós não podemos partir, então por que estamos falando sobre isso? E mesmo se nós pudéssemos... mesmo se pudéssemos... de onde essa coisa de ter filhos veio?

 

Nunca teve nada romântico entre Gale e eu. Quando nós nos conhecemos, eu era uma magrela de doze anos, e embora ele seja apenas dois anos mais velho, ele já parecia um homem. Levou um longo tempo pra que nós mesmo tornássemos amigos, para parar de discutir sobre todo negócio e começar a ajudar um ao outro.

 

Além disso, se ele quer filhos, Gale não terá problemas em encontrar uma esposa. Ele é bonito, forte o bastante para lidar com o trabalho das minas, e pode caçar. Você pode dizer pela forma que as garotas cochicham sobre ele quando ele passa na escola que o querem. Deixa-me com ciúmes, mas não pela razão que as pessoas pensariam. Companheiros caçadores bons são difíceis de encontrar.

 

— O que você quer fazer? — pergunto. — Nós podemos caçar, pescar ou colher.

 

— Vamos pescar no lago. Nós podemos deixar nossas varas e colher na floresta. Consiga alguma coisa legal para essa noite — ele diz.

 

Hoje à noite. Depois da colheita, todos são supostos a comemorar. E muitas pessoas fazem, de alívio que seus filhos foram poupados por mais um ano. Mas no mínimo duas famílias vão fechar suas persianas, trancar suas portas e tentar imaginar se eles sobreviverão às dolorosas semanas que virão.

 

Nós fazemos bem. Os predadores nos ignoram em dias quando há abundância de presas mais saborosas e fáceis. Ao final da manhã, temos uma dúzia de peixes, um saco de verduras e, o melhor de tudo, um balde de morangos. Eu achei o arbusto há poucos anos atrás, mas Gale teve a ideia de amarrar a rede de malha ao redor dele para afastar os animais.

 

No caminho de casa, nós viramos para o Prego, o mercado negro que opera em um depósito abandonado que uma vez guardou carvão. Quando vieram com um sistema mais eficiente que transportava o carvão diretamente das minas para os trens, o Prego gradativamente tomou o lugar.

 

A maioria dos negócios estão fechados a essa hora no dia da colheita, mas o mercado negro ainda está claramente ocupado. Nós facilmente negociamos seis dos peixes por bom pão, os outros dois por sal. Greasy Sae, a velha ossuda que vende tigelas de sopa quente de uma larga caldeira, toma metade das verduras das nossas mãos em troca de um par de pedaços de parafina. Nós podemos fazer um pouquinho melhor em outro lugar, mas nos esforçamos em continuar em boas relações com Greasy Sae. Ela é a única que se pode sempre contar para comprar um cão selvagem. Nós não os caçamos de propósito, mas se você é atacada e arranja um cão ou dois, bem, comida é comida.

 

— Uma vez na sopa, poderei chamá-lo de bife — Greasy Sae diz com uma piscadela.

 

Ninguém na Costura iria virar o nariz para uma boa perna de cão selvagem, mas o Pacifistas que vem para o Prego podem se dar ao luxo de serem um pouco seletivos.

 

Quando terminamos nossos negócios no mercado, vamos para porta dos fundos da casa do prefeito para vender metade dos morangos, sabendo que ele tem uma particular afeição por eles e pode bancar nosso preço.

 

A filha do prefeito, Madge, abre a porta. Ela está no meu ano na escola. Sendo filha do prefeito, você esperaria que fosse uma esnobe, mas ela é toda direita. Apenas se guarda a si mesma. Como eu. Desde que nenhuma de nós realmente tem um grupo de amigos, nós sempre parecemos terminar juntas na escola. Comendo o lanche, sentando perto uma da outra nas reuniões, fazendo parcerias em atividades esportivas. Raramente conversamos, o que satisfaz a ambas.

 

Hoje a sua monótona veste escolar foi substituída por um caro vestido branco, e seu cabelo loiro está preso com uma fita rosa. Roupas da Colheita.

 

— Bonito vestido — diz Gale.

 

Madge lança um olhar a ele, tentando ver se é um elogio genuíno ou se ele está apenas tentando ser irônico. Era um vestido bonito, mas ela nunca o usaria de maneira ordinária. Ela pressiona seus lábios juntos e então sorri.

 

— Bem, se eu terminar indo a Capital, quero parecer legal, não?

 

Agora é a vez de Gale ficar confuso. O que ela quer dizer? Ou ela está brincando com ele? Acho que é o segundo.

 

— Você não vai para a Capital —Gale diz friamente.

 

Seus olhos chegam num pequeno alfinete circular que enfeita o vestido dela. Ouro de verdade. Belamente feito. Podia manter uma família com pães por meses.

 

— O que você pode ter? Cinco entradas? Eu tive seis quando tinha apenas doze anos de idade.

 

— Não é culpa dela — eu digo.

 

— Não, não é culpa de ninguém. Só é assim — Gale rebate.

 

O rosto de Madge fica fechado. Ela coloca o dinheiro pelas frutas na minha mão.

 

— Boa sorte, Katniss.

 

— Para você também — respondo, e a porta se fecha.

 

Nós andamos em direção a Costura em silêncio. Eu não gosto que Gale zombe de Madge, mas ele está certo, é claro. O sistema da Colheita é injusto, com os pobres conseguindo o pior. Você se torna elegível para a colheita no dia em que completa doze anos. Nesse ano, seu nome entra uma vez. Aos treze, duas vezes. E assim por diante até completar dezoito, o último ano de elegibilidade, quando seu nome vai para a urna sete vezes.

 

Isso é certo para todo cidadão dentro de todos os doze distritos do país de Panem inteiro. Mas há um truque. Diga que você é pobre e está faminto como nós estamos. Você pode optar por adicionar seu nome mais vezes em troca de tésseras. Cada téssera vale um ano de um magro suprimento de grãos e óleo para uma pessoa. Você pode fazer isso para cada membro da sua família também.

 

Assim, aos doze anos, eu tive meu nome anotado quatro vezes. Uma vez porque eu tive de fazer e três vezes pela téssera para grãos e óleo para eu mesma, Prim e minha mãe.

 

Na verdade, todos os anos eu tenho que fazer isso. E as entradas são cumulativas. Então agora, aos dezesseis anos, meu nome estará na colheita vinte vezes. Gale, que está com dezoito anos e tem sozinho ajudado e alimentado uma família de cinco a sete anos, terá seu nome quarenta e duas vezes.

 

Você pode ver porque alguém como Madge, que nunca esteve no risco de precisar de tésseras, pode tirá-lo de si. A chance do nome dela ser puxado é muito pequena comparada àqueles de nós que vivem na Costura. Não impossível, mas pequena. E embora as regras tenham sido feitas na Capital, não nos distritos, certamente não pela família de Madge, é difícil não se ressentir daqueles que não tem que se registrar pela téssera.

 

Gale sabe que a sua raiva de Madge é equivocada. Outro dia, fundo dentro da floresta, eu o escutei falar alto sobre as tésseras serem apenas outra ferramenta para causar miséria no nosso distrito. Um forma de plantar ódio entre os trabalhadores famintos da Costura e aquele que geralmente podem contar com a ceia e, assim, garantir que nunca confiarão um no outro.

 

— É uma vantagem para a Capital ter-nos divididos — ele podia falar se não havia nenhum ouvido para escutar exceto os meus. Se não fosse o dia da colheita. Se uma garota com um alfinete de ouro e nenhuma téssera não tivesse feito o que eu tenho certeza que ela pensou ser um comentário inofensivo.

 

Enquanto caminhamos, eu fito o rosto de Gale, ainda ardendo sob sua expressão pétrea. Sua raiva parece inútil para mim, embora eu nunca dissesse isso. Não é que eu não concordasse com ele. Eu concordo. Mas que bem faz gritar sobre a Capital no meio da floresta? Não muda nada. Não faz as coisas justas. Não sacia nossos estômagos. Na verdade, espanta a caça mais próxima. Eu o deixo gritar, entretanto. Melhor ele fazer isso na floresta que no distrito.

 

Gale e eu dividimos nosso saque, deixando dois peixes, um par de pães bons, verduras, um quarto de balde de morangos, sal, parafina, e um pouco de dinheiro para cada um.

 

— Te vejo na praça — eu digo.

 

— Use algo bonito — ele diz sem rodeios.

 

Em casa, eu encontro minha mãe e irmã prontas para ir. Minha mãe usa um vestido fino dos seus dias de curandeira. Prim está com meus trajes da minha primeira colheita, uma saia e uma blusa franzida. Está um pouco grande nela, mas minha mãe o fixou com alfinetes. Mesmo assim, ela está tendo trabalho para manter a blusa dobrada nas costas.

 

Uma banheira de água quente me espera. Eu esfrego a sujeira e o suor da floresta e ainda lavo o meu cabelo. Para minha surpresa, minha mãe estendeu para mim um de seus belos vestidos. Uma coisa azul e macia com sapatos combinando.

 

— Você tem certeza? — pergunto.

 

Estou tentada a rejeitar as ofertas de ajuda ela. Por um tempo, eu estava tão furiosa que não permitiria que ela fizesse qualquer coisa por mim. E isso era algo especial. As roupas dela do seu passado eram muito especiais para ela.

 

— Claro. Deixa eu puxar esse cabelo para cima, também — ela diz.

 

Eu a deixo secá-lo e fazer uma trança na minha cabeça. Dificilmente posso me reconhecer no espelho rachado apoiado na parede.

 

— Você parece bonita — Prim fala numa voz baixa.

 

— E nada como eu mesma — falo.

 

Abraço-a, porque eu sei que essas próximas horas serão terríveis para ela. Sua primeira colheita. Ela está tão segura quanto poderia ficar, desde que entrou apenas uma vez. Eu não a deixaria arranjar nenhuma téssera. Mas ela está preocupada comigo. Que o impensável pode acontecer.

 

Protejo Prim de toda maneira que posso, mas sou impotente contra a colheita. A angústia que eu sempre sinto quando ela está com dor brota em meu peito e ameaça aparecer no meu rosto. Eu noto que a blusa dela está puxada para fora da saia nas costas de novo, e me forço a ficar calma.

 

— Olhe seu traseiro, patinha — digo, alisando a blusa de volta ao lugar.

 

Prim ri e me dá um pequeno “Quack”.

 

— Quack você — respondo com um ligeiro sorriso. Do tipo que apenas Prim consegue tirar de mim. — Venha, vamos comer — digo, e dou um rápido beijo no topo de sua cabeça.

 

O peixe e as verduras já estão sendo cozidas na sopa, mas aquilo será para a ceia. Nós decidimos guardar os morangos e pão de padaria para a refeição da noite, para fazê-lo especial, dissemos. Em vez disso tomamos leite da cabra de Prim, Lady, e comemos o pão duro feito de grãos de téssera, embora ninguém tenha muito apetite de qualquer modo.

 

À uma hora, nos dirigimos à praça. Comparecer é obrigatório a não ser que esteja com o pé na cova. Esta noite, oficiais irão ao redor checar se esse é o caso. Se não, você será preso.

 

Mas hoje, apesar das bandeiras brilhantes penduradas nas construções, há um ar de crueldade. O grupo de câmeras, empoleiradas como urubus nos telhados, só contribui nesse efeito.

 

Pessoas andam em fila silenciosamente e assinam. A colheita é uma boa oportunidade para a Capital de manter etiquetas na população também. Os de doze aos dezoito anos são unidos dentro de áreas marcadas por cordas pela idade, os mais velhos na frente, os mais novos, como Prim, lá trás. Membros da família se enfileiram ao redor do perímetro, segurando apertado a mão um do outro. Mas há outros, também, que não tem ninguém que eles amam em perigo, ou que não se importam mais, ou deslizam pela multidão, fazendo apostas nas duas crianças cujos nomes serão puxados. As apostas são feitas pela idade, se eles são da Costura ou comerciantes, se terão um ataque e chorarão. A maioria se recusa a fazer negócio com os mafiosos, mas cuidadosamente, cuidadosamente. Essas mesmas pessoas tendem a ser informantes, e quem não tem quebrado a lei? Eu poderia ser pega na base diária para caça, mas o apetite dos responsáveis me protege. Nem todos podem dizer o mesmo.

 

De qualquer forma, Gale e eu concordamos que se nós temos que escolher entre morrer de fome e uma bala na cabeça, a bala seria muito mais rápida.

 

O espaço fica mais apertado, mais claustrofóbico enquanto as pessoas chegam. A praça é bem larga, mas não o bastante para concentrar a população de cerca de oito mil do Distrito 12. Os retardatários são direcionados para as ruas adjacentes, onde se pode assistir ao evento em telas enquanto é transmitida ao vivo pelo Estado.

 

Eu me encontro de pé no grupo dos dezesseis anos da Costura. Nós todos trocamos pequenos acenos e então focamos nossa atenção no palco temporário que é colocado em frente do Edifício da Justiça. Possui três cadeiras, um pódio, e dois globos de vidro, um para os meninos e um para as meninas. Eu olho para os papeis escorregando dentro do globo das garotas. Vinte deles tem Katniss Everdeen escrito em cuidadosa caligrafia.

 

Em duas das três cadeiras estão o pai de Madge, Prefeito Undersee, que é um homem alto e ficando careca, e Effie Trinket, escolta do Distrito 12, vem da Capital com seu assustador sorriso branco, cabelo rosa e terno verde de primavera. Eles cochicham um para o outro e então olham com interesse o assento vazio.

 

Logo que o relógio bate as duas, o prefeito se levanta no pódio e começa a ler. É a mesma história todo ano. Ele fala da história de Panem, o país que se levantou das cinzas de um lugar que já foi chamado de América do Norte. Ele lista os desastres, as secas, as tempestades, os incêndios, as invasões dos mares que engoliu muita terra, a guerra brutal pelo pequeno alimento restante.

 

O resultado foi Panem, uma iluminada Capital rodeada por treze distritos, que trouxe paz e prosperidade para os cidadãos. Então veio os Dias Negros, a revolta dos distritos contra a Capital. Doze foram derrotados, o décimo terceiro obliterado. O Tratado de Traição nos deu novas leis para garantir a paz e, como nosso lembrete anual de que os Dias Negros nunca deveriam ser repedidos, deu-nos os Jogos Vorazes.

 

As regras dos Jogos Vorazes são simples. Como punição pela revolta, cada um dos doze distritos devem providenciar uma garota e um garoto, chamados tributos, para participar. Os vinte e quatro tributos serão aprisionados numa vasta arena ao ar livre que pode conter qualquer coisa, de um deserto ardente a uma devastação congelada. Pelo período de poucas semanas, os competidores devem lutar até a morte. O último tributo de pé ganha.

 

Tirando as crianças dos nossos distritos, forçando-as a matar um ao outro enquanto eles assistem – essa é a hora da Capital de nos lembrar como estamos totalmente a mercê deles. Quão pequena chance nos teríamos de sobreviver a outra rebelião.

 

Quaisquer palavras que usem, a real mensagem é clara. “Olhe como nós tomamos suas crianças e as sacrificamos, não há nada que vocês possam fazer. Se você levantarem um dedo, destruiremos cada um de vocês. Assim como fizemos no Distrito Treze.”

 

Para fazer a humilhação mais atormentadora, a Capital nos obriga a tratar os Jogos Vorazes como uma festa, um evento desportivo que coloca cada distrito contra os outros. O último tributo vivo recebe uma vida de tranquilidade de volta para casa, e seu distrito terá uma chuva de prêmios, consistindo largamente de comida. Todo ano, a Capital mostrará ao distrito vencedor presentes como grãos e óleo e mesmo delicadezas como açúcar enquanto o resto de nós batalha contra a fome.

 

— É tanto uma hora de penitência como uma hora de arrependimento — entoa o prefeito.

 

Então ele lê uma lista de antigos vitoriosos do Distrito 12. Em setenta e quatro anos, nós tivemos exatamente dois. Apenas um ainda está vivo. Haymitch Abernathy, um homem barrigudo de meia-idade, que nesse momento aparece gritando algo ininteligível, cambaleia para o palco, e cai na terceira cadeira. Ele está bêbado. Muito bêbado. A multidão responde com aplausos simbólicos, mas ele está confuso e tenta dar em Effie Trinket um grande abraço, ao qual ela mal consegue defender-se.

 

O prefeito parece aflito. Desde que tudo isso está sendo emitido através de televisão, agora mesmo o Distrito 12 é o alvo de riso de Panem, e ele sabe disso. Ele rapidamente tenta puxar a atenção de volta à colheita introduzindo Effie Trinket.

 

Brilhante e espumante como sempre, Effie Trinket trota para o pódio e dá sua assinatura:

 

— Feliz Jogos Vorazes! E que a sorte esteja sempre ao seu favor!

 

Seu cabelo rosa deve ser uma peruca, porque seus cachos tinham se deslocado levemente do centro desde que ela encontrou com Haymitch. Ela fala um pouco sobre que honra é estar aqui, embora todos saibam que ela está apenas se doendo para ir a um distrito melhor onde eles tenham vitoriosos apropriados, não bêbados que envergonham você na frente de uma nação inteira.

 

Através da multidão, localizo Gale olhando para mim com uma sombra de um sorriso. Enquanto a colheita continua, esse pelo menos tem um fator de entretenimento. Mas de repente eu estou pensando em Gale e seus quarenta e dois nomes dentro daquele grande globo e como as chances não estão ao seu favor. Não comparado a muitos garotos. E talvez ele esteja pensando a mesma coisa, porque o rosto dele escureceu e ele se virou.

 

“Mas ainda há milhares de papéis”, desejei poder sussurrar isso para ele.

 

É a hora do sorteio. Effie Trinket diz como ela sempre faz:

 

— Damas primeiro!

 

E cruzou o globo de vidro com os nomes das garotas. Ela chegou, empurrou sua mão fundo no globo, e puxa pra fora uma tira de papel. A multidão prende uma respiração coletiva e então você pode escutar um alfinete cair, e estou me sentido com náuseas, desesperadamente desejando que não fosse eu, que não fosse eu, que não fosse eu.

 

Effie Trinket atravessa o pódio, alisa o pedaço de papel, e lê o nome numa voz clara. E não sou eu.

É Primrose Everdeen.

 

*Qualquer erro de digitação, por favor nos avisar